MEMÓRIA DE IMAGENS E IMAGENS DA MEMÓRIA1
Rodrigo Muniz F. Nogueira2
Janete Ruiz de Macêdo3
A cidade de
Itabuna foi por muito tempo considerada o centro comercial da região sul da
Bahia. A Avenida do Cinqüentenário, principal artéria urbana da cidade, é um
dos mais antigos logradouros e, através dos seus usos e representações ao
decorrer da sua história é possível caracterizá-la como patrimônio
histórico-cultural da cidade. Este trabalho pretende mostrar as transformações
da antiga Rua da Lama até a apoteótica Avenida do Cinqüentenário, através do
uso das imagens e da memória daqueles que estiveram envolvidos no seu processo
histórico.
Itabuna,
Patrimônio Histórico-Cultural, Memória.
Nessa
época começava a surgir uma rua
comercial, onde se enfileiravam pelos dois lados, mais ou menos setenta
estabelecimentos como lojas, escritórios pra compras de cacau, bares, armazéns
de secos e molhados etc. (…) Começava à beira de uma enorme lagoa, tendo cerca
de quatro metros de largura e um chão de barro que em razão das constantes
chuvas transformava-se facilmente em visguento lamaçal. Sua extensão era de
aproximadamente trezentos metros. Porcos, cabras, galinhas, tropas de burros
carregados com sacos de cacau, misturavam-se com as pessoas. Tornou-se
popularmente conhecida como Rua da Lama (SILVEIRA: 2002, p. 30).
Após o ano
de 1911, a rua passou a se chamar Rua J.J. Seabra, em homenagem ao ex-governador
da Bahia José Joaquim Seabra. Até as comemorações do cinqüentenário de Itabuna,
profundas transformações ocorreram num breve período histórico. Em cinqüenta
anos, a rua foi praticamente remodelada e reconstruída, restando hoje apenas
alguns fragmentos que remetem à memória da extinta rua da Lama, Henrique Alves
e J.J. Seabra*.
O
que hoje é a Avenida Cinqüentenário é resultado da união de duas vias: a Rua
J.J. Seabra e a Rua 7 de Setembro (Resolução 51, 27/10/1960**),
que ao longo da década de 40, principalmente na gestão do prefeito Francisco
Ferreira da Silva, começou efetivamente
um processo de alargamento, retificação e desapropriação da avenida (Lei
nº7, 07/03/1941***) . Este empenho
resultou num amplo processo de retificação e diversas desapropriações do lado
direito da avenida (sentido Praça Santo Antônio/Praça Adami), no qual os proprietários da Farmácia São
José até a esquina do Bradesco foram obrigados a recuar por motivos de
interesse público (NEME, 2005).
A rua J.J. Seabra terminava
no atual cruzamento com a praça Santo
Antônio, antiga residência do Dr. Adolfo Maron. O processo de abertura da
avenida para as comemorações do Cinqüentenário da cidade deu-se na segunda
gestão do prefeito Francisco Ferreira, que primeiramente ampliou até o início
do canal Lava-Pés (Decreto-lei 209, 21/05/19554).
A abertura até a Avenida Juracy Magalhães, que desemboca na rodovia
Ilhéus-Itabuna, como se apresenta hoje em dia, foi realizada pelo prefeito José
de Almeida Alcântara, mediante um tumulto registrado pelo jornal Diário da
Tarde, em julho de 1962.
O dia 28 de julho (…) foi
entrecortado de algumas contrariedades, uma das quais ocorreu após a
inauguração pelo prefeito, de uma ponte sobre o canal do Lava-Pés. O povo
interpretando mal as palavras do prefeito, marchou para a residência do Sr.
Perinto Ribeiro, uma das vítimas ainda a interceptar a Avenida do
Cinqüentenário, tentando apedrejá-lo, não fosse a autoridade do Juiz de Direito
Dr. Francisco Fontes, que esclareceu que o prédio está sob o amparo da justiça
que estuda a questão de sua desapropriação.
O Sr. Perinto Ribeiro foi agredido pelos
mais exaltados, tendo sido recolhido ao hospital para tratamento. Era desejo do
prefeito de Itabuna terminar seu governo entregando pronta, ao povo aquela
artéria, orgulho de sua cidade. (JORNAL DIÁRIO DA TARDE, 30/07/1962).
Além
deste acontecimento, a avenida do Cinqüentenário sempre foi considerada um
palco de acontecimentos sociais, políticos e culturais da cidade. Nos
carnavais, por exemplo, aconteciam os desfiles dos cordões (espécie de escolas
de samba atualmente), afoxés, corsos, e de blocos como o Maria Rosa. Era também
na Cinqüentenário que discursavam os líderes políticos, como Fernando Ferradas,
que era líder do Partido Trabalhista; Silveira, que foi Governador do Rio de
Janeiro; e Jânio Quadros que, utilizando uma vassoura, prometeu varrer toda a
corrupção (SODRÉ, 2005).
Segundo
o próprio Valmir Sodré, que reside em Itabuna desde 1953 e é proprietário da
loja Nova Imperatriz, localizada na avenida do Cinqüentenário, um fato que
gerou grande repercussão na época foi uma revolta dos feirantes, por volta de
1958, irradiada pela alta dos impostos da prefeitura sobre os feirantes. A
feira, nessa época, era na praça Adami e , para Sodré, a avenida do
Cinqüentenário foi também o palco das manifestações, que obrigou o comércio a
fechar as portas por causa dos manifestantes.
Teve uma repercussão grande. Hoje em dia o povo já
não gosta muito de pagar tributo, o pessoal da feira principalmente, e o
governo começou a apertar a cobrança. Aí dizem até imposto de papagaio cobravam
(…) Aí começou o blá-bla-blá, mas sem saber o estrondo da boiada. Como em todas
as revoluções, que o povo quase não sabe o que vai fazer e porque está fazendo
(SODRÉ, 2005).
MEMÓRIAS E
IMAGENS CINQÜENTENÁRIAS
As memórias individuais dos
antigos habitantes da cidade, mais precisamente que moraram na avenida do
Cinqüentenário, remete-nos ao tempo passado com imagens imaginadas de um tempo
que se foi. Graças a estes personagens históricos e, ao mesmo tempo lamentando
não ser possível encontrar depoentes que possam relatar fatos antes da década
de 1930, foi possível construirmos, através destes fragmentos mnemônicos, o
lugar no seu cotidiano, não se limitando apenas às fontes oficiais, que
friamente se ocupam de mostrar os acontecimentos menos corriqueiros, através de
arquivos e documentos. Segundo Le Goff5:
A memória, como propriedade de conservar certas
informações, reenvia-nos em primeiro lugar para um conjunto de informações
psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações
passadas, que ele representa como passadas.
As
imagens de um passado vivo tornam-se presentes, então, através das memórias
coletivas. É como se o passado se tornasse sempre presente. Uma imensa
contribuição da utilização de informações mnêmicas, adquiridas através do
método da história, foi dada para que fosse possível aproximarmos desta
intenção de resgatar a história da avenida do Cinqüentenário desde seus
primórdios. Alguns dados obtidos sobre a rua só foram possíveis graças à
história oral, como por exemplo a revolta dos feirantes contada pelo
comerciante Valmir Sodré, em entrevista; e detalhes sobre a enchente que,
apesar de ser uma grande catástrofe, foi, ao contrário do que foi dito pelas
fontes oficiais, grandemente aproveitada pelos comerciantes para otimizarem as
vendas. Porém, há de ser ressaltado que a comprovação destes relatos são quase
impossíveis, já que a história oral registra a trajetória de pessoas e, por
meio delas recompõem aspectos da vida individual (GATTAZ, 1998), ou seja, não
podemos saber se os fatos ocorreram realmente ou se foi uma idéia deturpada ou
até mesmo inventada.
Além
das lembranças dos moradores para a construção de imagens do passado, as
próprias imagens, obtidas através de fotografias, das distintas épocas que
compõem a trajetória da Avenida, são ícones importantes na tentativa de se reconstruir
seus usos e representações sociais no decorrer da história. Como foi mostrado
anteriormente, a rua J.J. Seabra passou por um intenso processo de mudanças que
culminaram na abertura da Avenida Cinqüentenário em 1960.
As
fotografias antigas dos fenômenos sociais, políticos e culturais revelam todo
patrimônio material e as tradições inerentes à sociedade.
Percebe-se,
contudo que, longe de ser um flagelo ameaçador e contemporâneo, a imagem é um
meio de expressão e de comunicação que nos vincula às tradições mais antigas e
ricas de nossa cultura. Mesmo sua leitura mais ingênua e cotidiana mantém em
nós uma memória que só exige ser um pouco reativada para se tornar mais uma
ferramenta de autonomia do que de passividade. Vimos, de fato, que sua compreensão
necessita levar em conta alguns contextos da comunicação, da historicidade de
sua interpretação e de suas especificidades culturais. (JOLY, 1996)
Nos
jornais locais O Intransigente, A Época e Diário de Itabuna,
um dos principais veículos de comunicação da época, as propagandas das casas
comerciais já começam a aparecer. Como por exemplo a Alfaiataria Royal, de
Gabriel José Moreira, situado na loja Palácio Central, na Rua J. J. Seabra. De
acordo com esta pesquisa7
realizada nos jornais, diversos tipos de estabelecimentos mantiveram
propagandas nos jornais. Percebe-se uma grande variedade dos anúncios de
serviços, voltados para todas as classes sociais, como por exemplo anúncios de
escritórios, consultórios, armarinhos, ferragens, secos e molhados, bancos,
etc. Porém, devido à localização no berço comercial da cidade e também pelo
fato dos jornais não atingirem a grande massa, pelo grande número de
analfabetos, grande parte dos comerciantes não utilizavam desta mídia como
instrumento de divulgação. Em sua entrevista, Wehbe Neme, proprietário da Loja
América (Avenida Cinqüentenário, nº. 561), considerada por ele próprio como uma
loja popular, explica porque não costumava fazer propaganda nos jornais e nem
mesmo nas rádios, mídia considerada de maior penetrabilidade social:
Nunca fizemos propaganda, pelo ponto que
nós temos. Isso aqui é o coração do comércio de Itabuna (…) Eu fiz uma vez, a
pedido de uma pessoa conhecida da Rádio Jornal de Itabuna. E me apareceu um cliente, que diz que ouviu a
propaganda da minha loja em Buerarema. E aí disse: “eu vim aqui comprar uma
coberta, agora o Sr. vai fazer menos pra mim…”. A coberta era 15, terminou eu
vendendo pro homem por 7 cruzeiros. Foi uma propaganda negativa. (…) Quando nós
trabalhamos com cartão de crédito aqui, que eu fui inovar, aí comecei a receber
um bocado de cartão clonado. Tive prejuízo e aí abominei. Só vendo à vista. O dinheirinho que vem
entra nessa caixinha velha de mil novecentos e tanto. Isso é característica do
comerciante Sírio. Vende coisa pra pobre, porque a quantidade de pobre é maior
que a quantidade de rico. E pobre são pessoas honestas que compram, pagam e até
logo. (NEME, 2005)
A loja de Wehbe
Neme é uma das lojas mais tradicionais, que mantém até hoje, desde 1945, sua
fachada original. Outras lojas também conseguiram vencer o tempo e permanecer
quase da mesma forma, como por exemplo o Café Pomar, localizado na
Travessa Oswaldo Cruz, nº. 12. Este estabelecimento é datado de 1943, no qual
Bartolomeu Mariano, pai do atual proprietário,
Roberto L. Mariano, comprou nas mãos dos Irmãos Oliveira a antiga Casa
Pomar. O imóvel, cuja construção é estimada por volta do ano de 1905, é uma
espécie de condomínio comercial, caso comum na avenida, que, além do Café
Pomar, tem diversos outros estabelecimentos dispostos nesta configuração: uma
casa que se divide em outros pontos comerciais alugados ou próprios.
Outro caso de
manutenção da fachada original é a extinta Cooperativa de Crédito de Itabuna
Ltda., que em 2004 fechou as portas, perdurando exatos 80 anos de existência.
Há outros lugares, porém, que apesar de mudanças na fachada original,
permanecem ativos até hoje: é o caso da sorveteria Danúbio Azul, que atualmente
pertence a Henry Rene Brandão Soussa, filho do egípcio Expedito Rene Soussa
que, há mais de sessenta anos fixou-se na cidade no ramo da sorveteria.
O edifício
Comendador Firmino Alves é um caso que merece uma atenção especial: inaugurado
em 1953, foi o primeiro prédio com elevador da cidade e o mais alto e imponente
nas décadas de 50 e 60 (ROCHA, 2003). O edifício foi entregue como uma
homenagem a Itabuna, com parte da sua fachada lateral retratando a "Saga
do Cacau", obra do artista plástico Antônio Genaro de Carvalho.
A inauguração do majestoso edifício do
Banco Econômico da Bahia, notável empreendimento dos que não querem apenas
auferir lucros em nossa terra, mas ajudá-la a crescer, incentivar seu povo para
as mais úteis iniciativas. (Jornal O Intransigente, 29 de julho de 1953)
O
que mais impressiona na Avenida do Cinqüentenário é o seu grau de mudanças em
um breve tempo histórico. De 1910, data da emancipação do município, até 1960,
data da inauguração da avenida como parte das festividades do cinqüentenário da
cidade, a rua passou por amplos processos de transformações estruturais até
chegar ao modelo atual. Vê-se que casas foram demolidas para a construção de
prédios mais modernos, desconsiderando seus valores históricos. E é por isso
que deve-se criar condições de preservação dos imóveis que conservam os valores
patrimoniais e histórico-culturais de toda população. A Avenida do
Cinqüentenário é, no entanto, um instrumento de conservação das lembranças do
passado, suas lutas, sua evolução: palco das reminiscências e centro da cidade
de hoje em dia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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de Itabuna. Itabuna. Proplan. 1986.
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Rio Cachoeira – Um encontro em 1967. Ilhéus, Ba: UESC, 2002.
GUEDES, Maria Tarcila. Inventário Nacional dos
Bens Tombados. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Brasília. SPHAN. 1987
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Imagem. São Paulo. Papirus Editora, 1996.
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AGORA. Itabuna: Editora
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JORNAL
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O INTRANSIGENTE.
Itabuna. Editora O Intransigente, 1953 - Diário.
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História. Enciclopédia Einardi, vol. 1, Ed. Casa da Moeda. Porto / Lisboa.
MEIHY,
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NEME,
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UESC, 09 mar. 2005. Entrevista
a Janete Ruiz Macedo, Philipe Murilo Carvalho e Rodrigo Muniz.
ROCHA, Lurdes Bertol. O Centro da Cidade de
Itabuna: Signos e Significados. Salvador. Edufba. 2001.
SILVEIRA, Adelino Kfoury. Itabuna, minha terra!
Itabuna. Gráfica Santa Helena. 2002.
SODRÉ, Valmir. Projeto Memória e Lugar:
Fragmentos do Passado. Itabuna, UESC, 22 mar. 2005. Entrevista a Janete Ruiz de Macedo,
Philipe Murilo Carvalho e Rodrigo Muniz.
1 Título do artigo de conclusão do projeto de pesquisa Memória e Lugar: Fragmentos do Passado – Rua da Lama / Av. Cinqüentenário (1908-1970).
2 Aluno do 7º Semestre do Curso de Comunicação Social da UESC e Bolsista do PROIIC – UESC.
3 Professora do DFCH, coordenadora do Centro de Documentação e Memória Regional da UESC e Orientadora do Projeto de Pesquisa.
* As mudanças da nomenclatura da Avenida do Cinqüentenário traduzem as transformações passadas em pouco tempo da história urbana de Itabuna. É possível classificá-la como portadora de uma dinâmica própria e peculiar, característica que a tornaram o principal eixo comercial da cidade.
** Nomeação de via para Avenida do Cinqüentenário. Jornal Oficial do Município de Itabuna, nº. 1463, de 27 de outubro de 1960.
*** Alargamento da rua J.J. Seabra. Jornal Oficial do Município de Itabuna, nº. 514, de 07 de março de 1941.
4 Desapropriação na Rua J.J. Seabra e na Praça Santo Antônio. Jornal Oficial do Município de Itabuna, nº. 1188, de 21 de maio de 1955.
Foto retirada pelo fotógrafo Emerson Nogueira, pertencente ao acervo do Centro de Documentação e Memória Regional.
5 LE GOFF, Jacques. Memória / História. Enciclopédia Einardi, vol. 1, Ed. Casa da Moeda. Porto / Lisboa.
7 Pesquisa realizada nos jornais A Época, O Intransigente e Diário de Itabuna do período de 1920 a 1960.